Nesse mês de Março decidimos lançar uma programação especial compartilhando com a Comunidade Lawtex a trajetória de mulheres inspiradoras que batalham todos os dias para criar espaços e novas iniciativas nesse campo de Direito e Tecnologia.
Nossa primeira postagem é a entrevista feita com Marina Feferbaum, professora e coordenadora da área de Metodologia de Ensino e do Centro de Pesquisa e Ensino em Inovação, ambos da FGV Direito SP. Antes do surto do COVID-19, Marina gentilmente recebeu Amanda Pavanelli e Leilani Dian Mendes para um café e uma conversa descontraída na FGV Direito SP. Fica aqui o registro de nosso profundo respeito e admiração por seu trabalho e a certeza de que esse registro inspirará outros profissionais.
1 – Marina, por favor, compartilhe a sua trajetória na faculdade de Direito, até a sua escolha de trilhar esse caminho de metodologia no ensino jurídico dentro desse novo “campo” de Direito e Tecnologia.
Marina: Desde a faculdade, quando escolhi fazer Direito, sempre me interessei pelos temas e desafios decorrentes de Direitos Humanos e Justiça Social para melhoria das instituições. Contudo, durante o curso você vai aprendendo que Direito e Justiça são coisas muito diferentes e esse foi um dos maiores desafios para mim. Além disso, depois de um tempo fazendo a Faculdade, percebi que era desnecessário frequentar a sala de aula, eu podia estudar em casa ou ficar fora da sala de aula, pois as aulas nem eram tão importantes, eram puramente expositivas e isso sempre me frustrou na faculdade de Direito. Foi aí que busquei atividades alternativas para me engajar e me ressignificar no Direito.
Logo no segundo ano de Faculdade tive a oportunidade de conhecer a Escola de Formação da SBDP (Sociedade Brasileira de Direito Público), um grupo liderado pelo professor Carlos Ari Sundfeld que tive a oportunidade conhecer e isso mudou minha visão de Direito, minha visão do que era uma aula, enfim trouxe uma “luz no fim do túnel”. Percebi logo que minha vocação era na área acadêmica, mas essa escolha não foi fácil, era algo muito “fora da caixinha”. Para você ter uma ideia, na época que fui estagiária na FGV Direito SP a minha Faculdade não aceitou a minha atuação como estagiária acadêmica, pois o tradicional eram horas de trabalho em escritórios, empresas ou setor público, ou seja, a academia não era considerada como trabalho jurídico. E naturalmente, na insegurança de não experimentar outras oportunidades decidi experimentar o estágio tradicional em um escritório muito legal, mas no fundo já estava convicta que advocacia não era a “minha praia”.
Então no 4º ano fui estagiar na FGV e tive a oportunidade de trabalhar com o professor Oscar Vilhena (hoje diretor da FGV Direito SP). A convivência com professores, esse ambiente de criação foi muito especial e participar da criação da FGV Direito SP também. Acompanhei a primeira turma da escola, auxiliei na preparação dos materiais didáticos em Direito Fundamentais e fiquei por lá até me formar. Mas sempre existia aquela crise: “eu não vou ter aquela experiência profissional prática?”, então decidi trabalhar na Secretaria da Cultura (conhecer o Poder Público) e ver se concurso era uma possibilidade. Após algum tempo, voltei a trabalhar na FGV, especificamente na FGVLAW sendo pesquisadora e coordenadora de TCC.
Ainda na trilha de conhecer outras possibilidades de atuação, fui trabalhar com um desembargador no TJ/SP. Conheci pessoas incríveis que mudaram totalmente a minha percepção do Poder Judiciário, mas pessoalmente era um trabalho repetitivo, esgotante e, para mim, trabalhar com processos era como “enxugar gelo”, pois nunca terminavam. Finalmente voltei para FGV Direito SP para coordenar a área de Metodologia de Ensino e Pesquisa da escola e nunca mais saí!
O caminho para chegar na área de Tecnologia foi, na prática, lidando com novas metodologias de ensino. Eu e o professor Oscar Vilhena começamos a notar a mudança no mercado profissional em razão da entrada de novas tecnologias. Nesse sentido, fizemos uma reflexão profunda e resolvemos juntar o Núcleo de Metodologia de Ensino e Pesquisa e o Grupo de Ensino e Pesquisa em Inovação (GEPI), dessa junção que mais tarde virou o Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI). Nosso primeiro projeto foi sobre “O futuro das profissões jurídicas”. Ao realizar essa pesquisa pretendíamos olhar para a própria profissão e realizar a produção de conhecimento, considerando a escassez de artigos acadêmicos brasileiros sobre o tema. Além disso, realizar essa pesquisa era uma oportunidade de olhar para própria instituição e garantir aos nossos estudantes a melhor formação para que pudessem lidar com os desafios decorrentes de Direito e Tecnologia.
Com isso, fizemos a reforma da grade inserindo novas disciplinas, o CEPI foi se consolidando na relação de ensino e tecnologia com várias agendas de pesquisa, abordando temas como proteção de dados, privacidade, direitos humanos e novas tecnologias. É interessante notar que cada vez mais é perceptível que discutir tecnologia é discutir direitos humanos e isso me motiva muito!
2 – O que te motivou a escolher esse recorte de Direito e Tecnologia? Por que lançar um olhar acadêmico sobre esse campo?
Marina: No Brasil, não existe uma agenda consolidada de pesquisas sobre Direito e Tecnologia. Nesse sentido, não temos uma produção acadêmica voltada para entender como a tecnologia está impactando o mercado (por enquanto a OAB ainda não está se voltando para tais questões, pelo contrário, inclusive está tentando criminalizar algumas startups, talvez esse não seja o caminho mais adequado).
O fato é que não temos a produção de dados como por exemplo a American Bar Association que se preocupa em produzir dados e métricas sobre como está o mercado jurídico com a entrada de tecnologia, índice de automação nos escritórios etc. E isso nos motivou (no CEPI) a criar uma linha de pesquisa que possa qualificar o debate nesse sentido.
Além disso, outras questões, que dizem respeito ao surgimento de novos Direitos despertam a necessidade de diálogo e debate, como “direito à explicação”, “algoritmos racistas”, “ética e inteligência artificial”, são questões abertas que exigem uma discussão qualificada não só da academia como da própria sociedade. Deste modo, se mostra uma pauta de pesquisa que precisa de produção de conteúdo e muita reflexão.
E não menos importante o impacto social dessas tecnologias para focar em igualdade, democracia e acesso à justiça, enfim, é um mundo de temas interessantes a serem explorados.
3 – Quais habilidades você acredita que a faculdade de Direito tenha auxiliado na sua trajetória pelo Direito e Tecnologia?
Marina: Apesar das aulas muitas vezes não serem boas, a faculdade me deu muita autonomia para conquistar meus objetivos e correr atrás sozinha das respostas. E isso auxiliou a enfrentar os novos temas de Direito e Tecnologia, pois ainda não temos respostas e nem caminhos prontos para enfrentar seus novos desafios.Na PUC tive a oportunidade de vivenciar um ambiente heterogêneo, permeado por interdisciplinaridade, como o contato com cursos de ciências sociais, filosofia, e isso muito legal.
4 – E as habilidades que você acredita que tenham faltado na faculdade de Direito, para se preparar para enfrentar esse mundo de Direito e Tecnologia?
Marina: Faltou um olhar orgânico do currículo e não disciplinar de Direito Civil I, II, III, IV e V. Faltam aulas em que o aluno é o protagonista. Falta colaboração no desenvolvimento dos conteúdos jurídicos, falta engajamento, infraestrutura etc.
5 – Quais dicas você daria para estudantes de Direito e recém-formados que tenham a intenção de atuar em Direito e Tecnologia, seja como empreendedores ou como prestadores de serviços ou acadêmicos?
Marina: Acho muito importante (sabendo que temos mais de 1.400 cursos de Direito no Brasil): 1º Escolher o curso de Direito com muito cuidado. Por mais incrível que seja o fácil acesso universitário que vivenciamos hoje, é necessário refletir sobre esse tipo de acesso universitário. Se esse acesso é de qualidade ou não (busque sempre por Faculdades com comprometimento no ensino e visem preparar para o mercado de trabalho); e 2º Ter resiliência e autonomia, pois as coisas mudam, as leis mudam. A ideia é você saber raciocinar juridicamente e não memorizar a lei. Sempre tem espaços para bons profissionais, qualificados, éticos, não só no âmbito de legaltechs e lawtechs, como na advocacia, no Poder Judiciário, no Ministério Público, enfim, as instituições como um todo.
6 – O mercado tecnológico ainda é um ambiente predominantemente masculino. Na sua trajetória, quais atitudes você acredita que foram fundamentais para você conquistar o seu espaço?
Marina: Nós mulheres temos uma preocupação muito grande em se expor e como se expor no ambiente de trabalho, temos uma grande sensação de insegurança e como lidamos com ela. Por exemplo, trabalhamos várias horas para se preparar para uma apresentação enquanto alguns vão lá e fazem “freestyle” e tudo certo. O mais importante é trabalhar o emocional para lidar com a forma que fomos criadas para atuar e ser no espaço que efetivamente e merecidamente é nosso. Precisamos nos sentirmos merecedoras de estar nesses espaços, o que é um desafio.
7 – Compartilhe:
a) Sugestão de livro: Sociedade do Cansaço de Byung-Chul Han.
b) Sugestão de aplicativo: Octoplus, que realiza o cálculo de milhas de todos os seus programas e indica a melhor forma de comprar passagens.
8 – Tem algum recado para as mulheres que pensam em entrar nessa carreira?
Marina: Entrem sem medo de aprender, se reinventar, falar por si, de enfrentar os desafios que não só essa área traz, mas outras áreas também. Não deixe de fazer nada por se sentir menor e incapaz.
9 – Existe alguma pergunta que você gostaria que eu tivesse feito e não fiz?
Marina: Sim.
Você é otimista com a tecnologia?
Nem otimista nem pessimista, esse é aquele tipo de pergunta que reflete o modo como enxergamos a vida. Acredito que temos que ter um olhar crítico com a tecnologia e uma posição de que é difícil resistir a ela, ou seja, é um fato e temos que aprender a lidar com esse fato, buscando com as positividades e buscando consertar as distorções trazidas por ela, que são muitas.
10 – Como lidar com carreira e maternidade?
Marina: O ponto mais difícil é sempre se sentir devendo como profissional e enquanto mãe. E a ideia é ponderar sempre, parar e pensar que sim você está fazendo o seu melhor e levar a vida com leveza. Diga não a comparações com outros profissionais e foca no seu momento presente na maternidade e no trabalho, cada momento é precioso.